Everton Luis Gurgel Soares

1. Considerações iniciais

Já desponta uma nova era no cenário energético mundial. O início da década observou um importante ponto de inflexão: desde 2012, as fontes renováveis passaram a responder por mais da metade do acréscimo de energia elétrica mundial. É dizer, não obstante ainda hoje a participação total das renováveis esteja em patamar próximo de um quarto do total da geração elétrica, seu crescimento vem se dando em ritmo exponencial. Se, no ano de 2012, as fontes limpas apenas por pouco superaram as fontes não renováveis (em acréscimo de potência, frise-se, e não em potência total já instalada), logo três anos depois, as fontes renováveis passaram a responder por mais de 60% do acréscimo de potência de energia elétrica no planeta. É o que dão conta os dados da Agência Internacional de Energia Renovável (IRENA, na sigla em inglês) consubstanciados no seguinte gráfico:

Daí as mais diversas projeções indicarem que, em algum momento da segunda metade do século, ou mesmo antes disso, as energias renováveis constituirão a maior parte na matriz energética mundial. Ainda mais animadores são os dados e prognósticos para a energia solar, notadamente para sua modalidade mais promissora, a fotovoltaica, consistente na transformação da energia presente nos fótons de luz solar em energia elétrica. É ela a fonte energética que mais cresce no mundo, com uma taxa de incremento de impressionantes 45,5% anuais contra 24% da segunda colocada, a energia eólica.

A progressiva redução de preços dos painéis fotovoltaicos permite asseverar, sem titubeio, que é chegada a hora e a vez de a humanidade aproveitar a infinita fonte de energia limpa fornecida pelo sol. Diga-se, aproveitá-la de modo direto, pois quase a totalidade das fontes de energia tem origem mediata no sol. Quer sejam os ventos, formados pela diferença de temperatura na superfície terrestre; quer seja o movimento de ondas do oceano; quer seja a força das águas, antes feitas vapor pelo calor do sol, e que, em seguida, no seu decantar, movem turbinas hidroelétricas; todas essas fontes energéticas têm origem na energia proveniente do sol.

Mais que isso, mesmo a energia dos combustíveis fósseis provém da energia solar. O material orgânico do qual deriva o petróleo, por exemplo, é impregnado da energia que, na origem, foi gerada pelo processo de fotossíntese realizado pelo ser vivo que veio a se decompor e formar o óleo combustível.  

E por falar em fotossíntese, a importância da energia solar é tamanha, que no processo fotossintético ocorre semelhante processo de captura da energia dos fótons de luz solar, tal qual se dá nos painéis fotovoltaicos. A fotossíntese é, pois, um processo físico-químico que gera os nutrientes da base da cadeia alimentar. Sem ela, não seria possível boa parte da vida na Terra. Assim, tal como os fótons presentes nos raios de luz solar excitam os elétrons das células fotovoltaicas para gerar eletricidade, os mesmos fótons de luz solar, no processo de fotossíntese, geram energia ao excitarem elétrons nas células de vegetais clorofilados.

Como se nota, a energia do sol está em tudo e em todos. Sua força – perceptível aos olhos leigos, para além de qualquer nuança técnica – fê-lo, por sinal, venerado por grandes civilizações como a Egípcia e a Inca, como acusam seus deuses maiores, Rá e Inti, representativos do sol.

Por todas essas razões, ao que se soma a virtual infinitude da energia proveniente do sol – que, em apenas uma hora de radiação na superfície da Terra, despeja o equivalente a toda a energia utilizada em um ano no planeta – projeta-se um futuro de prevalência da fonte energética solar sobre todas as demais, como se depreende da figura abaixo reproduzida, modelada com dados do Conselho Consultivo Alemão sobre Mudanças Globais (WBGU). Não deixa mesmo de causar algum espanto a firme curva ascendente atribuída à energia por fonte solar. Veja:  

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Um futuro de ampla utilização da energia solar já é fato posto e incontornável no plano global, resta saber qual será o grau inserção do Brasil nesse cenário. Tomará posição sobranceira ou atuará a reboque de outros atores internacionais?

2. Medidas de incentivo à energia solar no plano local

Tendo em conta os benefícios ambientais e econômicos advindos do incremento na utilização da energia solar, é dado então ao setor público atuar para a criação de um ambiente interno propício ao desenvolvimento da respectiva cadeia econômica, sobretudo ao se ter em vista a especial relevância da atividade de indução pelo poder público quando se está a tratar de produção energética, como atesta inclusive a experiência internacional.  

Assim é que aos municípios – na qualidade de entes federativos detentores do poder-dever, em comum com a União e Estados-membros, de implementar um meio ambiente sustentável – cumpre oferecer sua parcela de contribuição no desenvolvimento de políticas de estímulo à fonte energética solar.

De um lado, as edilidades têm à disposição uma miríade de mecanismos ficais de estímulo, a exemplos dos já adotados em algumas cidades brasileira, tais como redução do quantum a pagar em impostos municipais, no tocante a serviços e imóveis afetos ao aproveitamento da energia fotovoltaica.

De outro, podem lançar mão de incentivos de natureza urbanística, a exemplo da ampliação do índice construtivo de edificações dotadas de engenhos de produção de energia por fonte solar. Benefícios dessa natureza, embora sejam, sob certa ótica, menos óbvios do que os incentivos tributários, são igualmente eficazes, ademais de não implicarem renúncia de receita pública.

O papel dos entes locais é, portanto, demais relevante. E tanto o é que a agenda 21 das Nações Unidas dedica um capítulo específico, o de número 28, a apontar a responsabilidade do poder local em promover a sustentabilidade em suas vertentes ambiental, econômica e social. Forjou-se até um termo novo, o “glocal”, da fusão de “global” com “local”, para espelhar a importância da ação no plano local com vistas à sustentabilidade global.

Se, como dissemos, a energia do sol está na origem de quase a totalidade das demais fontes energéticas, é preciso ter presente, no mesmo passo, que na origem da energia solar está o átomo, cuja fusão nuclear gera a energia que chega à Terra. Assim é que, por sua vez, a sustentabilidade global há de contar com seus átomos, vale dizer, há de contar com os poderes locais, para fomentar a ampla utilização de fontes energéticas renováveis.             

3. Fundamentos para o tratamento diferenciado da atividade de geração de energia por fonte solar

Há base normativa bastante para fundamentar os incentivos a serem conferidos pelos municípios à atividade de produção de energia por fonte solar. Cumpre referir primordialmente os arts. 225 e 23, VI, da Constituição Federal, que não apenas impõem ao poder público o dever de proteção ao meio ambiente, como fazem impregnar toda a ordem jurídica com valores inerentes à sustentabilidade ambiental. Trata-se de fenômeno já reconhecido no meio jurídico, o mesmo que instiga o constitucionalista português Gomes Canotilho a sentenciar que os Estados-nação atuais assumem a compleição de verdadeiros Estados constitucionais ecológicos.

Além disso, o art. 170 da Constituição erige expressamente a defesa do meio ambiente como princípio a ser observado pela atividade econômica nacional, inclusive “mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços”. O que deve ser entendido em conjugação com o art. 174, que faculta ao poder público, na qualidade de agente normativo e regulador da atividade econômica, lançar mão de incentivos, os quais, é certo, podem também assumir a natureza tributária. É nesse sentido a lição de Paulo Caliendo, para quem:

O Sistema Tributário deve incorporar a sustentabilidade como fim a ser perseguido. Deve igualmente existir congruência de fins entre a Ordem Constitucional e o Sistema Tributário, sob pena de incoerência material no sistema como um todo.

O princípio da sustentabilidade ambiental repercute por todo o sistema jurídico, inclusive o tributário. Nota-se que possui uma força normativa relevante, fruto da sua irradiação transversal de efeitos.  

Por conseguinte, o Estado, como indutor de uma atividade econômica sustentável, pode estabelecer condições diferenciadas, inclusive de feição tributária, para serviços, produtos e processos ambientalmente adequados.

Ao fim e ao cabo, muito do que pode parecer um tratamento desigual entre fontes renováveis e não renováveis de energia cuida, na verdade, de apenas integrar ao custo da fonte energética as externalidades ambientais que, amiúde, não são refletidas nos respectivos preços de mercado. Assim, no mais das vezes, o incentivo tributário nesse campo tende a apenas corrigir distorções originais decorrentes da desconsideração, pelo mercado, do custo dos serviços ambientais na formação dos preços das fontes de energia.

Outro comando normativo que ampara a adoção de políticas públicas de incentivo à fonte energética solar vem a ser o compromisso firmado pelo Brasil, no bojo das denominadas “Contribuições Pretendidas, Determinadas em Nível Nacional” (Intended Nationally Determined Contribution – INDC) da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (UNFCCC), mediante o qual o país se dispôs a:

Alcançar uma participação estimada de 45% de energias renováveis na composição da matriz energética em 2030, incluindo: – expandir o uso de fontes renováveis, além da energia hídrica, na matriz total de energia para uma participação de 28% a 33% até 2030; – expandir o uso doméstico de fontes de energia não fóssil, aumentando a parcela de energias renováveis (além da energia hídrica) no fornecimento de energia elétrica para ao menos 23% até 2030, inclusive pelo aumento da participação de eólica, biomassa e solar.

É bem de ver que as vantagens ambientais – e também, é bom que se diga, econômicas e sociais – provenientes da utilização da energia solar são demais evidentes, o que constitui substrato fático para se operarem os efeitos da norma constitucional que autoriza o poder público a incentivar as atividades econômicas ambientalmente adequadas.

É de se ter em mira que a energia solar é isenta de emissões de gases de efeito estufa (GEE), apontados como causa do aquecimento global. Além disso, como a geração de energia por fonte fotovoltaica costuma se dar próximo aos locais de consumo, elimina-se ou diminui-se a necessidade de linhas de transmissão, responsáveis por significativos impactos ambientais, muitas das vezes em locais ambientalmente sensíveis.

Ao despontar como alternativa à fonte hidráulica de produção de energia elétrica, a energia fotovoltaica pode ainda mitigar várias das consequências negativas daquela. Isso porque as hidroelétricas, apesar de também classificadas como fontes renováveis, impactam o meio ambiente de modo relevante, sobretudo com a inundação de grandes áreas, reduzindo a fauna e a flora e causando deslocamento de aglomerados humanos, ao que se somam, como já mencionado, os impactos resultantes das correspondentes linhas de transmissão.

Há ainda outros aspectos dignos de notas no cotejo entre as fontes hidráulica e fotovoltaica. O principal deles talvez seja a necessidade de diversificação de nossas fontes de produção de energia elétrica. Afinal, as hidroelétricas respondem por cerca de 70% de toda a produção de eletricidade no país, o que nos submete a uma extrema dependência dos regimes de chuvas, a afetar sobremaneira não apenas a segurança energética, como também o meio ambiente. Isso porque regimes inconstantes de chuva implicam o acionamento de usinas termoelétricas movidas a combustíveis fósseis, com a consequente emissão de importante volume de CO2 na atmosfera.     

Nessa mesma ordem de ideias, há ainda de se lembrar que a geração hidroelétrica, por não ter característica modular, diversamente do sistema fotovoltaico, não favorece o fornecimento de energia a rincões do país para os quais há dificuldade de instalação de redes de transmissão.

E, por último, ainda acerca das vantagens da energia solar sobre a geração hidroelétrica, não se pode absolutamente omitir o fato de que a água é dos recursos naturais mais preciosos e disputados da atualidade.

Ademais disso tudo, é preciso ter presente que o aproveitamento da energia solar, sobretudo na modalidade que mais vem se expandindo, isto é, na produção de energia elétrica por processo fotovoltaico, mostra-se consentânea com o princípio da sustentabilidade também sob a ótica da sustentabilidade econômica e social, porquanto goze de alto potencial de geração de empregos, inclusive comparativamente às demais fontes de energias renováveis. É o que se depreende do gráfico abaixo, em que se expõe a relação entre empregos criados e potência energética instalada para as diversas modalidades de energia renovável:

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Ao se falar em geração de empregos ou mesmo de incremento da economia decorrentes da atividade de geração de energia por fonte solar, ganha relevo os benefícios de ordem local, por força mesma das características dessa fonte energética, que pode ser instalada modularmente e é apta a ser aproveitada em locais desprovidos de infraestrutura robusta.

Pelos mesmos motivos, a geração fotovoltaica de eletricidade é instrumento sem precedentes para desconstituir o denominado monopólio natural da indústria de rede no segmento da energia elétrica. Afigura-se, assim, um importante instrumento de quebra desse repisado –  e, na perspectiva do consumidor, indesejado – monopólio natural, dada a desnecessidade do sistema de transmissão de energia nas hipóteses de geração fotovoltaica de pequeno e médio portes, tais quais as que se dão próximo ao local de consumo.

Para além da eventual dispensa do sistema de transmissão, a energia solar também assume uma feição antimonopolista à vista da potencial desnecessidade de um sistema de distribuição (em outras palavras, da desnecessidade de se valer da concessionária local). Isso porque o desenvolvimento de baterias aptas a armazenar o excedente de energia fotovoltaica – para a posterior utilização noturna, por exemplo – tende a tornar prescindível a utilização da distribuidora local como receptora e agente de compensação do excedente de energia que o sistema fotovoltaico tenha produzido.   

É, com efeito, um sinal dos tempos a utilização do termo “prossumidor” para designar o usuário do sistema de produção de energia elétrica fotovoltaica, que assume, na mesma toada, a condição de produtor e consumidor da energia elétrica. Portanto, a geração de eletricidade por fonte solar possui um viés, por assim dizer, libertário, de par com seus atrativos de natureza ambiental e econômica.       

Há de se destacar, ademais, que a geração de energia por fonte fotovoltaica é mecanismo de grande relevo na trajetória para se obter edifícios de gasto energético zero, ou net zero building, edificações cujo gasto energético, depois de reduzido pelo incremento da eficiência, é compensado pela geração própria de eletricidade.  Afinal, como apontei em A Cidade e o Planejamento Energético, só o setor de edifícios é responsável por espantosos 50% do consumo energético do planeta, “considerando-se não só a exploração, mas também sua construção”. Nos Estados Unidos, por exemplo, edifícios respondem por 39% das emissões de CO2, mais do que qualquer outro setor. Tal segmento é, sozinho, responsável por mais emissões anuais de CO2 nos EUA do que as emissões totais de qualquer outro país, com exceção à China. E vale dizer que a obtenção de edificações com gasto zero de energia não se coloca apenas em termos programáticos, tanto que, como assinalei alhures:

Duas inovações (no plano Europeu) operadas pela nova Diretiva, a 2010/31, são particularmente dignas de nota. A primeira refere-se ao art. 9º, que estatui a obrigação consoante a qual, “o mais tardar em 31 de Dezembro de 2020, todos os edifícios novos sejam edifícios com necessidades quase nulas de energia”. Obrigação essa antecipada em dois anos, ou seja, fixada para 31 de Dezembro de 2018, “para os edifícios novos ocupados e detidos por autoridades públicas”.

Pelo que se percebe, com o comando desse art. 9º, a União Europeia pretendeu dar um paço à frente na promoção de uma rede sustentável de edificações. Nesse caso, foi além de simplesmente compelir os Estados Membros a adotarem requisitos mínimos de desempenho energético, senão estabeleceu como paradigma futuro o edifício com necessidades quase nulas de energia (nearly zero-energy building ou net-zero buildings). Avanço tão brusco pode ser explicado pela importância (…) da melhoria de desempenho energético das edificações em cotejo com o quadro geral de medidas que podem ser implementadas na direção do uso mais eficiente de energia e da tutela ambiental daí decorrente.

Nesse particular, a União Europeia não está sozinha, eis que o Departamento de Energia dos Estado Unidos estabeleceu um pretensioso objetivo de, para 2025, criar as bases tecnológicas e de conhecimento para a construção de edifícios zero-energy em condições economicamente vantajosas.

Bem se vê que sobram razões de ordem fática, as quais, por sua vez, são abraçadas por normas componentes do sistema jurídico, suficientes a dar guarida à atuação dos municípios no incentivo à utilização da fonte energética solar.

4. A omissão à energia fotovoltaica em programas de benefícios fiscais envolvendo o IPTU (uma necessária correção)

Não obstante o imposto sobre a propriedade territorial urbana possua, a priori, natureza fiscal, isto é, tenha na arrecadação de receita para o Estado sua prevalente razão de ser, o benefício fiscal consubstanciado na redução da alíquota de IPTU tem se mostrado um importante mecanismo de que se valem os municípios para o incentivo a práticas sustentáveis. Trata-se então de emprestar ao IPTU uma funcionalidade extrafiscal, como bem explica Paulo de Barros Carvalho. Veja:

Vezes sem conta a compostura da legislação de um tributo vem pontilhada de inequívocas providências no sentido de prestigiar certas situações, tidas como social, política ou economicamente valiosas, às quais o legislador dispensa tratamento mais confortável ou menos gravoso. A essa forma de manejar elementos jurídicos usados na configuração dos tributos, perseguindo objetivos alheios aos meramente arrecadatórios, dá-se o nome de extrafiscalidade.

Cidades como Salvador, Porto Alegre, Palmas, Jundiaí, Betim, Louveira, Belford Roxo e Seropédica, entre outras, já preveem em sua legislação a renúncia de receita do IPTU atinente a imóveis que aproveitem a energia solar para a produção fotovoltaica. Por seu turno, municípios como São Paulo, Belo Horizonte, Cuiabá, Cachoeira do Sul, Anápolis e Santa Cruz do Sul têm em tramitação projetos de lei com o mesmo objetivo.

Entre os acima citados, há programas de incentivo cujo mérito é inegável. Refira-se, v.g., ao projeto de lei da cidade de São Paulo, que, seguindo a mesma formatação adotada no Solar Electric Generating System Tax Abatementem da cidade de Nova Iorque, oferece descontos no imposto sobre a propriedade imobiliária em montante proporcional ao investimento realizado no sistema fotovoltaico.

No entanto, menos do que apontar os casos exitosos, mais nos vale chamar a atenção para o fato de que muitas das leis com base nas quais administrações municipais pelo Brasil afora propagandeiam a adoção de formas de incentivo à energia solar, simplesmente, não preveem qualquer benefício à modalidade de aproveitamento da energia solar por fonte fotovoltaica, é dizer, não estabelecem incentivos à adoção dos módulos e painéis de conversão de energia solar em eletricidade.

O que tais leis e projetos, quase à unanimidade, estabelecem é o incentivo à adoção de “sistema de aquecimento hidráulico solar” e de “sistema de aquecimento elétrico solar”, sem relação direta com o aproveitamento da energia do sol para a geração de energia elétrica via painéis fotovoltaicos.

Nos programas de incentivo que remontam há muitos anos, a omissão é justificada. Afinal, por muito tempo a principal forma de aproveitamento da energia solar no Brasil e no mundo deu-se via coletores de calor para o aquecimento d’água, em razão do alto preço das células fotovoltaicas então. Já hoje, a omissão, menos do que um ato deliberado do legislador, pode significar desconhecimento do tema.

Tanto é assim que a esmagadora maioria dessas leis e projetos segue um padrão estabelecido, a repetir um modelo textual que vem sendo, há muito tempo, replicado em diversos municípios brasileiros.    

 São exemplos de cidades com lei desse jaez, a prever o incentivo apenas ao aquecimento solar, e não à energia fotovoltaica, o Distrito Federal, Bragança Paulista, Campo Grande, Camboriú, Goiânia, Itatiba, Guarulhos, Mauá e Atibaia. Outras contam com projeto, também de semelhante teor, sob apreciação das Câmaras de Vereadores. Exemplo dessas últimas são as cidades do Rio de Janeiro, Manaus, Vitória da Conquista, Venâncio Aires e Foz do Iguaçu.

Ditas leis e projetos seguem, como dito, um padrão textual semelhante, prevendo a redução da alíquota de IPTU para imóveis em que se adotem medidas tais como sistema de captação da água de chuva, de reuso de água, construção com material sustentável, separação de resíduos sólidos, sistema de energia eólica e, ainda, sistema de aquecimento hidráulico solar e de aquecimento elétrico solar. Com algum acréscimo ou supressão, essas são em linhas gerais as situações ensejadoras da redução de alíquota de IPTU em quase a totalidade das leis e projetos das cidades acima mencionadas. Os demais elementos dos textos das normas também dão conta da similitude, um indicativo de que uma serviu de base para a outra, e, com isso, a omissão à energia fotovoltaica foi sendo replicada, quiçá inadvertidamente.

De outra banda, o fato de boa parte das normas incluir a energia eólica como suscetível ao benefício oferece a certeza de que a omissão ao sistema fotovoltaico não é intencional, pois não há motivo razoável para concluir que as mesmas razões que presidem a concessão do benefício à energia eólica – certamente com vistas a incrementar a mini ou microgeração de energia elétrica – não presidam igualmente a concessão do benefício também para a mesma geração elétrica, só que por fonte solar.

Tomem-se dois exemplos, um do Distrito Federal, já na forma de lei aprovada, e outro do Rio de Janeiro, neste caso, um projeto de lei em curso na Câmara de Vereadores. A ver:

Lei do Distrito Federal.

Lei n° 5.965, de 16 de agosto de 2017.

Cria o programa IPTU Verde, que dispõe sobre a redução no Imposto Predial e Territorial Urbano – IPTU como incentivo ambiental destinado a proteger, preservar e recuperar o meio ambiente.

Art. 1º Fica instituído no Distrito Federal o Programa IPTU Verde, cujo objetivo é fomentar medidas de redução de consumo de recursos naturais e de impactos ambientais, as quais preservem, protejam e recuperem o meio ambiente, mediante a concessão de benefício tributário ao contribuinte.

§ 1º O benefício tributário a que se refere o caput consiste na redução do Imposto Territorial e Predial Urbano – IPTU aos proprietários de imóveis residenciais e não residenciais que adotem as seguintes medidas:

I – arborização;

II – implantação de quintal e calçadas verdes;

III – sistema de captação da água de chuva;

IV – sistema de reuso de água;

V – sistema de aquecimento hidráulico solar;

VI – sistema de aquecimento elétrico solar;

VII – construções com material sustentável;

VIII – utilização de energia passiva;

IX – sistema de energia eólica;

X – implantação de telhado verde em todos os telhados disponíveis no imóvel para esse tipo de cobertura;

XI – separação de resíduos sólidos;

XII – manutenção do terreno sem a presença de espécies exóticas invasoras e cultivo de espécies arbóreas nativas;

XIII – utilização de lâmpadas de LED.

xxxxx

Projeto de Lei do Rio de Janeiro.

Projeto nº 1027/2014

Dispõe sobre incentivo, denominado “IPTU verde”, no âmbito do município do Rio de Janeiro e dá outras providências.

Art. 1º Fica instituído no âmbito do Município, o IPTU Verde, cujo objetivo é fomentar medidas que preservem, protejam e recuperem o meio ambiente, mediante a concessão de benefício tributário ao contribuinte.

Art. 2° Será concedido benefício tributário, consistente em reduzir o Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU), aos proprietários de imóveis residenciais.

Parágrafo único. As medidas adotadas deverão ser realizadas em:

I – imóveis residenciais (incluindo condomínios horizontais e prédios):

a) sistema de captação da água da chuva;

b) sistema de reuso de água;

c) sistema de aquecimento hidráulico solar;

d) sistema de aquecimento elétrico solar;

e) construções com material sustentável;

f) utilização de energia passiva;

g) sistema de utilização de energia eólica.

Embora se trate de apenas dois exemplos, foram estes pinçados entre muitas outras leis e projetos que, seguindo semelhante padrão textual, incorrem na mesma falta: estabelecem um sem-número de situações ensejadoras da redução da alíquota de IPTU, inclusive a adoção, no imóvel, de sistemas de geração eólica e de aquecimento por fonte solar, deixando de fora, contudo, a geração fotovoltaica de energia elétrica.

5. Considerações finais

O desenvolvimento e efetiva utilização global e em larga escala de fontes renováveis de energia é notícia que merece ser festejada. Ainda mais animador é observar que especialmente a fonte solar, virtualmente infinita e livre de emissões de CO2, desponta, cada vez mais, como alternativa economicamente viável para a produção de energia elétrica, a ponto lhe ser prevista, para um futuro não tão distante, a primeira colocação entre todas as fontes, renováveis ou não, componentes da matriz elétrica mundial.

A própria China, notabilizada no senso comum como “a grande poluidora”, vem a ser nada menos do que o país líder no acréscimo anual de potência energética por fonte renovável. A posição dianteira da China é nomeadamente expressiva no setor fotovoltaico, segmento em que vem superando as metas que ela próprio se impôs, de sorte que se tornou a líder mundial em instalação e fabricação de sistemas fotovoltaicos.    

É de se repetir, então, o questionamento lançado linhas atrás: já que um futuro de ampla utilização da energia por fonte solar é fato posto e incontornável no plano global, resta saber qual será o grau inserção do Brasil nesse contexto. Tomará posição sobranceira ou atuará a reboque de outros atores internacionais?       

A resposta à indagação depende, em grande medida, de como o poder público lidará com a cadeia produtiva da indústria fotovoltaica, porquanto a produção energética seja especialmente suscetível aos desígnios indutivos do Estado, fenômeno não apenas brasileiro, mas presente também em países de economia ainda mais aberta.  

Nessa perspectiva, desponta o papel dos entes locais na criação de um cenário propício ao incremento da energia fotovoltaica. Programas de benefício fiscal consistentes na redução da alíquota de IPTU para imóveis ambientalmente adequados – um dos mecanismos de maior relevo de que dispõem os municípios para induzir um meio ambiente sustentável – têm sido, no entanto, frequentemente implementados sem qualquer referência aos sistemas fotovoltaicos, senão apenas ao uso de fonte solar para mero aquecimento. Omissão que, como visto, possivelmente não seja sequer deliberada.  

São muitos os casos, a ponto de gerar uma conjuntura com densidade suficiente para reclamar alguma iniciativa das entidades associativas do segmento fotovoltaico ou dos entes da administração pública nacional afetas ao setor. É, portanto, premente a necessidade realização de um trabalho de esclarecimento junto aos agentes políticos locais, a fim de demonstrar que a atividade de transformação da luz solar em eletricidade, o efeito fotovoltaico, não vem sendo contemplada em boa parte dos programas de incentivos fiscais implementados nos municípios brasileiros.

Vale dizer, da mesma forma que já se clamou pela aplicação de um IPTU Hidrológico , a incluir no seu critério quantitativo variáveis voltadas a diminuir os impactos negativos da impermeabilização na drenagem urbana, é-nos dado pugnar que os programas de incentivos fiscais comumente denominados IPTU Verde adiram à roupagem de um verdadeiro IPTU Solar.

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