INTRODUÇÃO

A Terra está em perigo. Ou seria a humanidade? Quiçá ambas. Mas há uma diferença essencial entre uma e outra: a Terra não deixará de girar, não deixará tão cedo de ser Terra, apesar do homem, apesar de qualquer outro pesar. Estamos no ano dois mil e quinze. Foram dois mil e quinze giros ao redor da maior estrela à vista e, antes disso, tantas outras translações foram necessárias até que o homem passasse a figurar na face deste planeta. E de quantas mais a humanidade poderá gozar?

A Terra não está em perigo. Talvez como a conhecemos, sim. Mas não a conhecemos há muito. A existência da humanidade compreende uma diminuta fração do tempo de existência do planeta. Tanto é assim que, num exercício de abstração, se atribuíssemos ao universo a idade de um ano, a Terra teria se formado apenas em 14 de setembro; em 30 de dezembro apareceriam os primeiros mamíferos; e só às 22 horas do dia 31 de dezembro, os homens. E diversas mudanças a Terra já experimentou, sem e com os homens: do calor infernal que fazia lama das rochas ao intermitente frio glacial. Noventa e nove por cento de todas as espécies que já habitaram um dia este planeta estão extintas. Delas o homem não conheceu a maior parte, não tendo contribuído, portanto, para sua extinção. Então, tema-se pelo fado da humanidade, pois a Terra lhe sobreviverá, ainda que impactada por esse ser que apareceu na ponta da evolução da vida. Mesmo com alguns sacos plásticos em suas entranhas, lembranças daquela fugaz espécie de triste fortuna (a humanidade), a Terra sobreviverá ao homem, pelo menos até que o sol deixe de irradiar sua energia daqui a alguns bilhões de anos. Se a tecnologia não nos matar a todos até lá, quem sabe não serão os homens, e sua tecnologia, chamados a salvar a Terra do destino que lhe reservou o universo? “Chamem os homens para reacender o sol!”, quem sabe? De vilões a heróis, um grand finale!

Mas não creio. O homem, digo o animal-homem e não os vigorosos elementos culturais que o distinguem da natureza, é mais frágil ou mais insignificante do que se costuma pensar. Antes da oportunidade de nos tornarmos heróis, nossa existência já se terá esvaído, num dia em que o universo não mandará flores, pois nem perceberá.

Tudo isso para dizer que o lugar do homem não é no banco dos réus da história universal. O homem pode errar aqui e ali. Por sinal, é-lhe próprio o erro. Porém, numa perspectiva espaço-tempo dilargada, seus erros não alterarão substancialmente o curso das coisas. Nesse cenário em que se descortina a pequenez do homem, sobra espaço até para incentivar um certo grau de antropocentrismo, para enaltecer, o máximo possível e enquanto há tempo, nossa breve existência.  

Por outro lado, não há como negar a força persuasiva e cativante de argumentos que relacionam proposições antropocêntricas com o sentimento de egoísmo, com uma síndrome de superioridade ou um destrutivo impulso dominador do homem. Farpas sobram até para produtos culturais como as religiões, cujo antropocentrismo, inerente a muitas delas, é considerado responsável por legitimar a degradação do ambiente. Trata-se de um discurso falho, mas, ao mesmo tempo, fácil: combater todos os produtos fruto do engenho, da cultura e da razão humana. Fácil porque é imanente ao homem, e, por conseguinte, ao produto de suas ações, o erro.

O mundo natural não erra; o homem, sim (a religião, só para citar o exemplo já dado, porque é um produto cultural, reveste-se de erros), mas não por isso há de se subtrair do homem seu direito de errar, o que, bem entendido, equivaleria a subtrair-lhe a humanidade.

Já a extinção desta (da humanidade), a reboque do fim da espécie humana, legaria ao universo o vazio de uma ausência infinita. Ao falar em “humanidade” não me refiro ao coletivo do animal-homem, mas às características que lhe permitem ultrapassar os condicionamentos do meio natural, de sua programação biológica, de seus instintos. Mas não só. Permitem-lhe também superar as condicionantes fruto de sua própria produção cultural, não obstante a mesma liberdade que lhe permite transcender essas condicionantes seja a característica que torna possível tal produção cultural. Assim, o homem pode sobrepor-se também às práticas consuetudinárias de seus ancestrais, às tradições arraigadas em sua comunidade, às suas origens nacionais. E tudo isso só é possível por força da liberdade, que é, como se verá mais adiante, a principal característica diferenciadora da humanidade.

A extinção da espécie humana, se se quiser referir a essa como mais uma espécie animal, não significaria uma perda maior do que a de cada uma das cento e cinquenta que se extinguem todos os dias. Já o fim da liberdade e de tudo o que é próprio do homem, diferentemente, representaria a insuperável perda de uma riqueza sem paralelo.

O retorno à natureza, uma ética a ser extraída do ecossistema e o conceito de localismo numa versão extremada, tal como conclamados pelo movimento ecológico radical, significam não só a negação dessa liberdade, mas também a negação da universalização do espírito humano, que remonta à filosofia kantiana, com a sua concepção do homem como legislador universal e com a ideia de uma moral válida incondicionalmente para todos os seres racionais.

É por isso que, conforme François Ost, é própria do homem:

A faculdade inaudita de se distanciar em relação àquilo que se é, àquilo que se faz ou àquilo que se diz; a faculdade de se transportar para outro lado, de se projetar num espaço-tempo diferente, de recusar a sua condição. Esta faculdade tem um nome: é o dom da universalização. Distanciando-se em relação às determinações do hic et nunc, o homem é capaz de se universalizar: de se colocar no lugar do outro, não importa qual.

Na mesma linha é a lição de Luc Ferry, que, de resto, relaciona a característica da universalização com o senso de altruísmo:

A existência ética mais fundamental entre os modernos, a do altruísmo, é, no seu próprio princípio, antinatural, uma vez que implica uma forma de desinteresse. Pressupõe, com efeito, uma “boa vontade” e exprime-se, inevitavelmente, sob a forma de um imperativo. Mas é também a referência à universalidade, incompreensível fora dos limites desta nova antropologia filosófica, que se torna necessária […] É por se mostrar capaz de se distanciar do ciclo da sua vida biológica, mas também da sua língua, da sua nação, da sua cultura particulares, que ele pode entrar em comunicação com outrem. A sua capacidade para o universal é função direta desse afastamento.

À vista disso tudo, coloca-se a questão: faz algum sentido adotar políticas ecológicas com o pretensioso objetivo de salvar a Terra dos atos humanos danosos se tais políticas exigirem a mitigação da liberdade? Na trajetória do universo, que se inicia com a grande explosão e segue com sua fase de expansão, a liberdade do homem pode ser vista como um brevíssimo lampejo, mas que reluz forte como um clarão a partir daquele pequeno ponto azul, o planeta Terra. Na breve jornada da existência humana, mais vale aos homens velar pela liberdade, propulsora da produção cultural, que lhes permite transcender a natureza e, vale dizer, os próprios condicionamentos culturais. Definitivamente, descabe-lhes concorrer para o desvanecimento desse lampejo, ainda que sob o pretexto de resguardar o ecossistema. Se para valorizar o que o homem possui de peculiar em sua essência é pressuposto abraçar o antropocentrismo, é nossa obrigação fazê-lo então.

Desse modo, com alicerce em tais ideias, pugno por uma nova conformação do princípio da sustentabilidade, a veicular duas dimensões: a natural (ou ecológica) e a metanatural (ou humana). Esta última a envolver tudo o que é próprio do homem (ou, se se quiser colocar em uma só palavra, sua liberdade) e que lhe permite ultrapassar os condicionamentos biológicos e do meio natural em que se insira, mas também a cultura de seu povo, os condicionamentos sociais, as tradições. Não é que o homem não sofra influência desse estado de coisas. Todos esses fatores agem sobre seu espírito, moldando-o. Mas, e isso é o que importa, não o limitam. Repise-se: o homem não deixa de ser ele e mais suas circunstâncias, como quer Ortega y Gasset, contudo, ainda que apenas potencialmente, sempre lhe resta algo de liberdade para conferir-lhe a aptidão de ultrapassar tais condicionamentos.

Assim, sob essa nova perspectiva, ao se lançar mão do princípio da sustentabilidade, há que sempre se convocar à baila o que é próprio do homem, dado o contrabalanceamento de valores ínsito ao preceito (equilíbrio entre as dimensões ecológica e humana). O princípio da sustentabilidade é, nesse cenário, uma garantia de que tudo o que é próprio do homem – como a liberdade, a razão e a cultura – seja tomado em consideração ao se encetarem, por exemplo, políticas públicas ambientais. O princípio da sustentabilidade funciona, então, como um limite às políticas ambientais que tendam a relegar os valores humanos a segundo plano. Um limite especialmente às investidas misantrópicas da ecologia profunda ou radical.

Não obstante, como deixarei claro à frente, o princípio da sustentabilidade não impõe uma escolha apriorística entre suas dimensões natural e metanatural. Ambas têm sua importância reconhecida pelo princípio. O que não poderia ser diferente, já que formam suas dimensões ou vertentes. O princípio exige, na verdade, que ambas as vertentes sejam levadas em consideração e, com isso, impede o avanço de algumas proposições da ecologia profunda que resultariam no aniquilamento do que é próprio do homem, ou mesmo do próprio homem. Dessa forma, a norma evita que cedamos passo, por exemplo, aos preceitos que embasam as seguintes manifestações de ecologistas radicais: “preferiria matar um homem a atirar numa cobra”; “a pior coisa que poderíamos fazer na Etiópia é fornecer ajuda; a melhor, deixar a natureza buscar seu próprio equilíbrio, deixando as pessoas de lá passar fome”; “se a epidemia de AIDS não existisse, ecologistas radicais teriam de inventá-la”; “a humanidade tornou-se algo como uma praga de gafanhotos no planeta”; “uma mortalidade humana maciça seria uma coisa boa” (ver capítulo 4).

Devo dizer, por fim, que o viés antropocêntrico da tese aqui defendida e o enfoque dado aos riscos a que a ecologia radical pode sujeitar o humanismo não implicam que este autor desconsidere a importância de se alterar a atual relação do homem com o ecossistema. A humanidade é a protagonista óbvia em problemáticas como a da biodiversidade, preservação ambiental e produção de resíduos. Muito lhe compete fazer, ou deixar de fazer, para que sejam atingidos equilíbrios razoáveis em cada um desses campos, não só para proporcionar qualidade de vida, mas também para garantir as condições mesmas de sobrevivência para si e para os demais componentes da comunidade biológica. Entretanto, a despeito de sua crucial importância, tais temas cedem passo nesta obra a outro igualmente relevante: a ameaça aos valores humanistas por parte de doutrinas ecológicas radicais.