No último dia 15, a Diretoria da Aneel, reunida para sua 38ª sessão ordinária, causou surpresa e estremecimento ao dar a conhecer ao público sua nova proposta de alteração da resolução normativa (REN) 482/2012, que regulamenta a micro e minigeração distribuída de energia elétrica (GD).  

Não era para menos, pois, em abrupta guinada procedimental, a Agência adotou metodologia completamente diversa da que compôs os relatórios que até então vinha submetendo a consulta pública, ao passo em que propôs para a compensação dos créditos de energia o regime tarifário mais gravoso – é dizer, a malsinada alternativa 5, de uma escala progressiva em que a alternativa 1 representa o menor e a 5, o maior ônus para o segmento. Fez isso igualmente em dissonância com a proposta por ela própria selecionada nas etapas anteriores do processo de revisão, eis que, por meio do relatório de análise de impacto regulatório (AIR) nº 004 de 6 de dezembro de 2018, a Aneel deixava claro que as opções mais adequadas ao setor elétrico seriam a alternativa 1, para GD local, e a alternativa 3, para GD remota.


Mas não só, pela nova proposta, as regras atuais (ou alternativa 0) vigorarão apenas por um período de 10 anos para os sistemas de geração preexistentes à publicação da norma de revisão, e não mais por 25 anos, tempo equivalente à vida útil de um sistema fotovoltaico, como previsto originalmente em seu relatório de AIR 004/2018.

À vista disso – e sem descurar das demais incongruência e nulidades que permeiam o conteúdo e a forma da nova proposta, o que será objeto de nossa análise em outra oportunidade – é preciso desde logo chamar a atenção para o fato de que a alteração do regime de compensação dos créditos de energia, em desconsideração do tempo de vida útil do equipamento fotovoltaico já integrante do sistema, significa uma frontal violação ao princípio da segurança jurídica, preceito basilar da atividade regulatória e norma extraível da própria concepção de Estado democrático de direito[1].

Não obstante, na documentação apresentada juntamente com a nova proposta – notadamente nos tópicos 79 do Anexo 1 da nota técnica 078/2019 e 195 do relatório de AIR 003/2019, ambos de 7 de outubro último –, a Aneel sustenta ter respeitado a segurança jurídica e a previsibilidade regulatória, na medida em que garantiu a fruição das regras originais por período consideravelmente maior do que o tempo de retorno de investimento em sistemas fotovoltaicos: 10 anos (até 2030), contra um payback que, segundo sua estimativa, gira em torno de 4 ou 5 anos.

Justamente aí reside o erro jurídico-conceitual da Agência. Isso porque a lógica da previsibilidade protegida pelo princípio da segurança jurídica salvaguarda a justa expectativa de quem, ao instalar uma central fotovoltaica, projete dela usufruir pelo respectivo período de vida útil (25 anos, como assinala a própria Aneel em sua nota técnica). A proteção da confiança, subprincípio da segurança jurídica, veda ao Estado regulador a alteração das consequências jurídicas e econômicas de decisões que foram tomadas pelo administrado anteriormente à vigência de um novo marco regulatório. Em outras palavras, à segurança jurídica não basta que se dê a perspectiva de retorno do investimento proposto, senão que a justa expectativa de lucros e benefícios não seja malograda por decisão adotada pelo Estado regulador. Vale frisar, ao Estado descabe garantir a efetivação dos lucros e ganhos projetados pelo empreendedor, este naturalmente se submeterá aos riscos e incertezas próprios do ambiente empresarial. O que não se concebe, contudo, é a frustração das perspectivas de ganhos em razão de alterações regulatórias, a repercutirem em quem, como na problemática em análise, já integra o sistema de compensação de energia em GD.  

A Aneel, ao relacionar a previsibilidade regulatória com a mera proteção ao tempo de retorno do investimento (payback), superdimensionou a faceta econômica do princípio da segurança jurídica, em detrimento do real comando que se extrai da norma. Veja-se bem. Se, por um lado, não se desconhece a importância da análise econômica do direito – por meio da qual a aferição das normas se dá com base em suas consequências econômicas; método, por sinal, abraçado pela ordem jurídica brasileira a partir da recente alteração do art. 20 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro –, por outro, a segurança jurídica é preceito de tal sorte fundamental ao próprio Estado de direito, que a proteção a seu núcleo essencial está infenso a análises puramente economicistas.

Não se trata de um fenômeno exclusivo da segurança jurídica. Ofereço outro exemplo. Seria possível cogitar uma hipótese em que a retirada de determinada lote de produto alimentício do mercado viesse a ser extremamente danoso à economia, a despeito de tal produto implicar algum risco à saúde de uma diminuta fração de pessoas. No exemplo dado, apesar de a análise econômica sugerir a manutenção da venda do produto, a proteção à saúde é de tal modo fundamental, que o núcleo da norma não cede passo às consequências econômicas, impondo então a retirado do produto do mercado.

É o mesmo que ocorre com a manutenção das regras da GD para quem já se encontra inserido no sistema. Embora uma análise meramente econômica do direito aponte na direção de que é garantida a previsibilidade regulatória ao se manterem as regras atuais pelo tempo de payback, uma vez que, assim, a alteração não importaria em prejuízos diretos, o núcleo essencial do princípio da segurança jurídica exige mais: impõe que o próprio cenário normativo-regulatório seja mantido. Isso porque a manutenção das regras incidentes sobre quem já opera no ambiente regulado é da própria essência do princípio, pouco importando se da alteração não advenha prejuízo direto, senão meras frustrações de ganhos.

Somem-se a isso mais duas considerações: a primeira, há um custo de oportunidade incidente sobre a escolha de investir em um sistema fotovoltaico, em que se toma em conta a perspectiva de usufruir das regras em vigor, com a abdicação de outras oportunidades de negócio; a segunda, a decisão de investimento em GD inclui, muitas das vezes, a obtenção de financiamento de prazo longo, cuja amortização corresponde ao gasto evitado de pagamento da tarifa de energia durante o tempo de vida útil do sistema.  

E tampouco altera a conclusão a que chegamos o fato de a Aneel ter anunciado, já em 2015, a revisão da REN 482 ora em curso. Primeiro, porque a alteração de marcos regulatórios, previamente anunciada ou não, não deve surtir efeitos retroativos, a atingir quem já é parte do sistema; segundo, porque a referência a eventual mudança do regime de compensação não foi anunciada em peça normativa (lei ou resolução, por exemplo), em relação às quais há presunção de conhecimento por todos, mas sim por meio do voto condutor do processo de revisão que culminou na REN 687/2015[2]; terceiro, porque, na hipótese de adesão ao regime de GD local ainda antes do pretenso anúncio de revisão – em 2014, por exemplo –, o regime de compensação de crédito seria alterado, à luz da nova proposta da Aneel, ainda 9 anos antes do fim da vida útil do sistema, que se daria em 2039.  

Certo é que a nova proposta da Agência Nacional de Energia Elétrica tem o potencial de reduzir a escombros muito do que de positivo se vem construindo no segmento de energia solar. A título ilustrativo, é pertinente citar o caso de duas parceiras público-privadas com editais já em fase de consulta pública, por meios das quais o Município de Fortaleza promoverá a utilização de energia via GD para os imóveis componentes dos serviços de educação e de saúde. Ditas PPP’s são reverenciadas como uma grande oportunidade de modernização do parque imobiliário municipal, não apenas pelo aproveitamento, em si, da energia renovável, como também em razão dos benefícios marginais relacionados à manutenção, digitalização e controle remoto do sistema elétrico e dos pontos de carga, como ventiladores e aparelhos de ar-condicionado. Em prevalecendo a proposta da Aneel, seria colocada em risco a continuidade desses e de outros relevantes projetos.

Estamos, no entanto, certos de que, no curso da próxima fase do processo de revisão da REN 482, a Aneel reverá sua proposta para o setor. Particularmente no tocante ao tempo de permanência nas regras atuais de compensação, a rejeição da proposta lançada pela Aneel, como se viu, menos do que uma escolha quanto ao mérito, é imposição do próprio princípio da segurança jurídica, pedra de toque da atividade estatal regulatória.


[1] A Segurança Jurídica também é norma prevista expressamente nos arts. 5º, XXXVI, da Constituição Federal e 2º da Lei 9.784/1999, entre outros diplomas normativos.  

[2] Notem que o art. 15 da REN 482 anuncia, apenas de modo genérico, a futura revisão da norma, em nada prenunciando mudanças na forma de compensação dos créditos de energia. Em verdade, a redação dada pela REN 687/2015 ao art. 15 da REN 482 é praticamente igual ao texto original de 2012. Vejam a redação original do art. 15, “A ANEEL irá revisar esta Resolução em até cinco anos após sua publicação”, em comparação com a redação dada pela REN 687/2015: “A ANEEL irá revisar esta Resolução até 31 de dezembro de 2019”.